
curadoria Marcelo Campos + Filipe Graciano
Projeto de ações culturais e artísticas que ocupou o Centro Cultural Sesc Quitandinha, em Petrópolis (RJ), de abril a setembro de 2023.

A diáspora africana para o Brasil constituiu um sequestro dos povos daquele continente que, por aqui, foram escravizados e configuraram um país com cerca de 56% da população afrodescendente. Um dos maiores traumas dessa história, como nos ensina Achille Mbembe, foi a dispersão de comunidades. Contudo, entre um e outro continente, a presença do oceano alimentou narrativas e lendas, relatos e sonhos, assombros e esperanças.
Paul Gilroy chamou o mar da separação de Atlântico Negro. Rosana Paulino nos instiga
a pensar uma outra cor: o vermelho, do sangue derramado das vítimas. Fabulado como a morada de sereias, esse oceano se impôs na tradição de festas e ritos; da cura e da dor;
lugar para lançarmos as flores do ano-bom; estrada para as procissões marítimas e, sobretudo, metáfora de muitas lágrimas. Conceição Evaristo, ao pensar uma mãe negra,
dirá sobre o úmido de seus olhos: “a cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de mamãe Oxum. Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla
a vida apenas pela superfície”.
Esta é uma exposição que se debruça sobre esses encontros com o oceano.
O de aqui e o de lá, o mesmo Atlântico, tingido de vermelho e negro. O de doze artistas
que imaginam, criam, inventam, fantasiam e ofertam-nos o mar como arquivo, memória
a ser curada para que possamos atravessar os planos da vida.
Em Aline Motta, o mar guardado de uma família, cuja genealogia se tornou tarefa
e surpresa, dada a violência colonial que tentou apagar os rastros do parentesco;
de Arjan Martins que nos propõe virar de ponta-cabeça as embarcações,
os símbolos, as rotas, as que se tornaram ruínas, mantendo os povos daqui e de lá em consonância; de Ayrson Heráclito em busca da cura, do descarrego, dos ebós feitos com ervas, pembas e defumadores para expurgar a carga espiritual dos monumentos que permaneceram erguidos nas fortalezas e nos portos dos dois lados do Atlântico;
de Azizi Cipriano, no regaço da beira do mar ou nas profundezas das florestas,
a umidade das terras, a massa modelar das argilas e a corpa se reinventando no contato incorporado com as deusas, as iyabás; de Cipriano que ora, escreve e declama a invocação aos irunmalés (os primeiros habitantes que vieram do além/orun para a terra/aiyê);
de Juliana dos Santos, cujo azul-marinho renasce do mar nas plantas, nas flores e que, agora, ganha outros matizes, como se de todos os elementos do mundo, pudéssemos fazer pós essenciais, memoráveis, cujas cores desaparecem com a luz dos dias e a “cinza das horas”, no dizer do poeta; de Lídia Lisboa que do corpo da mulher destaca os seios, as tetas, vertendo leite numa trama de tiras e trançados, coincidindo com os mitos aquáticos em que dos seios de sereias choraram os mares; de Moisés Patrício, direcionando seu olhar para as cenas de terreiro, os de agora e os ancestres, amalgamando a cerâmica tradicional das quartinhas, alguidares e porrões com o cimento, o urbano, pois na sobrevivência das tradições, a cidade sempre se fez presente; de Nádia Taquary, o oceano que traz a dádiva dos peixes, o arrasto de pratas brilhantes que nos alimenta da fome diária e nos faz abençoados pela Iyá, cujos filhos são peixes; de Rosana Paulino, o nefasto resultado do racismo que separa brancas e negras, as sinhás e suas subalternas, na exploração da mão da limpeza, mas que não impede que se borde a família em um vestido de lembranças; de Thiago Costa, os signos resultantes de tradições diversas — malê, banto e nagô —, cujos riscos e desenhos foram as armas que nos fizeram sobreviver, flechas, facas, machados constantemente relembrados em metal e tecidos (axós) presentes nos afoxés carnavalescos; de Tiago Sant’Ana, o resplandecer do ouro, na conquista colonial e na reapropriação do povo negro que o ostenta em sorrisos, depois da lida dos garimpos.
“Um oceano para lavar as mãos”, como nos versos de Chico Buarque e Edu Lobo,
parte do que Mbembe chamou de “grande noite”, do azul profundo, e revê a ambiguidade das ações reparadoras: alguém fez alguma coisa? Podemos lavar as mãos? Aqui, a arte alvorece em imagens que jamais nos deixarão esquecer, pois reinstauram, a todo instante, rasuras por sobre os traumas para que possamos riscá-los e lê-los, ao mesmo tempo. Talvez, assim, pensar na palavra composta pelo desejo da personagem de Conceição Evaristo, ao dizer: “quero boiar no profundo fundo do mar. Quero o fundo do mar-amor onde deve reinar a calmaria”. Boiar no fundo, para nós, nunca foi surrealismo, muito ao contrário, boiar no fundo é renascer do ventre da mãe, pois assim viemos ao mundo, muito antes. Nós, mesmos, as próprias embarcações.
Marcelo Campos + Felipe Graciano


Vídeo por Thomas Mendel
O Sesc RJ entende que a cultura é capaz de transformar vidas. Possibilita novas formas de agir, de pensar e de ver o mundo, contribuindo para a construção da cidadania e de identidades. É a arte como forma de reflexão, desenvolvimento humano e qualidade de vida.
Desde 2007 sob gestão do Sesc RJ, o Sesc Quitandinha agora deixa de ser uma Unidade Sesc para assumir sua vocação essencialmente cultural, transformando-se em Centro Cultural Sesc Quitandinha (CCSQ) e dedicando suas atividades exclusivamente à arte em todas as suas linguagens e formas de expressão.
Um equipamento cultural grandioso, que reafirma o protagonismo do Sesc RJ no cenário cultural da Região Serrana, do Estado do Rio de Janeiro e de todo o país.
Inaugurando a programação do Centro Cultural Sesc Quitandinha, o projeto
Um Oceano para Lavar as Mãos traz um novo conceito de exposições de artes visuais. Com curadoria de Marcelo Campos e Filipe Graciano, a mostra ocupa diversos espaços do CCSQ e norteia uma série de atividades que a alimentam através de encontros, saberes, reflexões, questionamentos e celebrações.
As atividades são gratuitas e incluem shows musicais, espetáculos de artes
cênicas, exibições de filmes, atividades literárias, seminário e oficinas.
Desejo que todos vivam aqui momentos únicos e experiências inspiradoras.
Antonio Florencio de Queiroz Junior
Abril/2023
Clique nos espaços coloridos do mapa e acesse os textos de cada artista.



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